quarta-feira, 2 de julho de 2014

Entrevista: britânica perde filha para as drogas e transforma dor em luta

Em nome de Martha - 1 (© Foto: Arquivo Pessoal)

FONTE: BEATRIZ ALESSI

Como uma mãe começa a atravessar a espessa cortina do luto e a digerir a morte da única filha? Em "Macbeth", Shakespeare aconselha: “Dai voz à vossa mágoa”. Foi o que fez a britânica Anne-Marie Cockburn, no dia 21 de julho de 2013. Em seu diário, ela escreveu: “Minha filha de 15 anos morreu ontem. Vi quando tentaram salvá-la. Deram choques no peito e enfiaram algo na perna dela mas eu sabia que já estava morta ao chegar ao hospital. Levantaram os braços dela em vão: com os olhos semiabertos, ela estava além das nuvens e das estrelas”.

No dia anterior, Anne-Marie havia reservado um hotel onde ela e a filha, Martha, passariam o fim de semana seguinte. Era um sábado ensolarado do verão inglês e Martha tinha ido andar de caiaque com amigos num lago em Oxford, onde moravam. Depois do passeio, a jovem ingeriu meio grama de ecstasy e teve uma parada cardíaca. Anne-Marie recebeu um telefonema de um número não identificado. Do outro lado da linha, alguém dizia que estavam tentando salvar sua filha.

Quando seu mundo ruiu, foi na escrita que Anne-Marie encontrou um meio de continuar viva. Mãe solteira e sem um companheiro com quem dividir a perda, ela teve que assumir tarefas inomináveis, como escolher um caixão para a filha. O relato pungente dessa dor está no livro “5.742 Dias”, o número de dias que Martha viveu. Mas em vez de pregar a vingança, como na tragédia shakespeariana, Anne-Marie optou pelo perdão.

Quase um ano depois da morte da filha, ela virou símbolo da luta pela regulamentação responsável de drogas recreativas na Grã-Bretanha. Perdoou o traficante de dezessete anos que vendeu o ecstasy para a filha e quer fazer o possível para que outras famílias não tenham a mesma sina. “Martha não queria morrer, apenas ficar chapada como tantos adolescentes” – diz ela. O grau de pureza da pílula era de 91%. Martha havia feito pesquisas na internet sobre os riscos do ecstasy e provavelmente escolheu uma droga mais cara por julgá-la mais segura. “Se as drogas fossem regulamentadas e identificadas pela dosagem, ela teria tomado uma decisão mais consciente”, me disse ela por email.

Meu contato com Anne-Marie começou há alguns meses. Comovida com seu exemplo de coragem, mandei-lhe uma mensagem pelo Twitter. Ela me contou que a morte da filha – uma menina alegre, que adorava animais e tinha compaixão pelas pessoas – despertou nela o instinto de sobrevivência. “Tudo o que me resta é a minha própria vida. Preciso de fatos para lidar com a dor. Martha morreu e não vai voltar. Não penso muito nem no passado, nem no futuro. Só temos o presente, então é preciso vivê-lo ao máximo.”

Um presente vivido “nas garras do luto, um vilão à beira do precipício”, como descreveu num post em seu site “What Martha did next” (O que Martha fez depois). Hoje, Martha encarna o sonho de que outros jovens tenham a chance que o destino não lhe deu.

Em nome de Martha - 1 (© Foto: Arquivo Pessoal)

Trecho do Livro 5.742 Dias:

Minhas pálpebras finalmente pararam de resistir ao sono e dormi profundamente. Acordei cedo. Meu coração ainda bate, mas está condoído por saber que a saudade nunca vai passar. Eu sentia falta dela até quando se ausentava por algumas horas. Por isso a falta que sinto agora é estranha. Ter que me acostumar com a ausência dela vai contra tudo o que sente cada célula do meu corpo. Sou mãe e mães cuidam, planejam, protegem os filhos, ralham com eles quando o quarto está bagunçado. Mães mandam os filhos para o banho depois de um dia nadando no lago. Martha inventava desculpas e ia para a cama suja. Nunca mais vou poder ralhar com ela.

Em nome de Martha - 1 (© Foto: Arquivo Pessoal)

Ainda sou mãe, mas não uma mãe praticante. Tenho todas essas habilidades que serão úteis na vida e que agora não servem mais ao seu propósito imediato. Mesmo assim, fiz o que precisava ser feito. Entrei na internet e comecei a procurar um caixão: o que Martha gostaria? Ela não era nada tradicional, mas também não ia gostar de algo muito chamativo. As respostas vão surgindo naturalmente. Sei que vou saber escolher uma coisa legal mas o que isso importa agora? O verdadeiro sentido da vida me atinge como um raio. A antiga versão de mim parece insignificante. É uma pena que isso tivesse que acontecer para fazer surgir essa versão mais valente.

Em nome de Martha - 1 (© Foto: Arquivo Pessoal)

Post publicado no site What Martha Did Next (O que Martha fez depois):

Já são 284 dias sem Martha e mal acredito que esteja conseguindo inventar uma nova vida para mim. Muitas portas que antes estavam fechadas se abriram, mas tive que pagar um preço muito alto por isso e estou convencida de que é preciso fazer o possível para evitar que outros pais passem pelo que estou passando. Ser uma mãe solteira enlutada é a pior coisa do mundo. Ironicamente, as habilidades que acumulei me deram a força imensa que agora se faz necessária para fazer parte de um diálogo sensato pela mudança. Uma regulamentação rígida e responsável de drogas recreativas é fundamental. Isso está claro para mim agora.

Em nome de Martha - 1 (© Foto: Arquivo Pessoal)

Post publicado no site What Martha Did Next (O que Martha fez depois):

29 de abril de 2014

Enquanto vago por esse estranho novo mundo, tendo aprendido um novo dialeto e assumido uma nova identidade, penso aonde isso me levará. Quero prosseguir, tenho escolha? Qualquer um de nós tem escolha? Haverá um mapa indistinto das nossas vidas antes do primeiro sopro de ar nos pulmões? Volto àquele dia perfeito na praia, um dia antes da minha menina partir. Terá sido coincidência ou um prêmio de consolação pelo que aconteceria no dia seguinte? [...] Eu te odeio, luto. Mas você parece me amar e grudar nas minhas costelas.

Em nome de Martha - 1 (© Foto: Arquivo Pessoal)

Post publicado no site What Martha Did Next (O que Martha fez depois):

24 de junho de 2014

Uma amiga acaba de me mandar uma mensagem. Está em férias na Grécia e acaba de ler meu livro na praia. As palavras dela são cheias de compaixão e carinho e retribuo com gratidão. Nossa, penso, meu livro com a foto da minha linda menina na capa está numa praia na Grécia. Há mais de 8 mil cópias em circulação no mundo, 8 mil Marthas - incrível! A ideia me consola. Estou compartilhando minha filha com o mundo e, assim, mantendo-a viva.

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